segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Desconstitucionalização das polícias: de complicado, só mesmo o nome


No texto a seguir, são reapresentadas propostas de Luiz Eduardo Soares sobre as Guardas Civis Municipais e as virtudes de uma progressiva transição para a municipalização da segurança pública, no estado do Rio de Janeiro, depois que se conquistasse, no Congresso Nacional, a desconstitucionalização das polícias, transferindo aos estados a autoridade para escolher o modelo de polícia que lhes fosse mais apropriado. Isto permitiria que cada um tratasse à sua maneira o problema, sempre respeitando as normas do Sistema Único de Segurança Pública, que deverão, também, ser regulamentadas pelo Congresso, por legislação infra-constitucional. Para alguns estados, a municipalização poderia ser considerada imprópria. Para o Estado do Rio, segundo Luiz Eduardo, ela poderia vir a ser um caminho positivo. “Essas definições, entretanto, deveriam emergir de um extenso e profundo debate, envolvendo toda a sociedade, além dos profissionais diretamente envolvidos, aos quais caberia o protagonismo decisivo nesse processo de descongelamento e renovação institucional”.

GUARDAS MUNICIPAIS E SEGURANÇA PÚBLICA
Luiz Eduardo Soares
(trechos de texto redigido em 2004 e publicado em Legalidade Libertária, editora Lumen-Juris, 2006)

Durante muito tempo, autoridades municipais escudaram-se na Constituição Federal para justificar a própria omissão. Não haveria o que fazer por força de um veto constitucional. Lavar as mãos seria um imperativo legal, não uma negligência. Consequentemente, só restaria aos prefeitos lamentar e transferir o problema para as outras esferas da Federação. Essa interpretação da Constituição era muito útil e favorecia os prefeitos, aliviando-os de mais esse fardo. Útil aos prefeitos negligentes, mas nocivo aos interesses da sociedade.

Contudo, a leitura da Carta Magna não está correta. O artigo 144 diz que segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos. É, portanto, também responsabilidade da prefeitura.

As polícias estão subordinadas ao executivo estadual, é verdade, mas segurança não se faz só com polícia. Faz-se com políticas preventivas especificamente desenhadas para esse fim, concebidas com base em diagnósticos precisos, sensíveis às particularidades locais e aptas a interceptar as dinâmicas imediatamente geradoras da violência. Políticas e ações específicas, que não se confundem com políticas estruturais, ainda que se beneficiem delas e com elas se articulem. Políticas e ações específicas, que exigem novas unidades e novos métodos de gestão, como veremos adiante.

Por outro lado, há ainda outro recurso da maior importância à disposição dos municípios: as Guardas Civis. É fato que elas ainda estão legalmente limitadas e só podem ocupar-se da proteção de bens e serviços municipais. No entanto, nada impede que elas atuem prevenindo o crime, pelo efeito inibitório de sua mera presença ostensiva, uniformizada, nas ruas. E que contribuam para sua contenção, prendendo em flagrante, o que é facultado a todo cidadão pelo código de processo penal: “...a polícia deve e o cidadão pode...”

Quer dizer, mesmo sem poder de polícia, a Guarda Municipal não está impedida de cumprir um relevante papel na provisão de segurança. E o fará tão melhor quão mais integrada estiver com o núcleo de coordenação das políticas preventivas e com as polícias estaduais. Esse ponto também será objeto de considerações, adiante. E no futuro, deverá assumir maiores responsabilidades, alcançando status de polícias municipais plenas, de ciclo completo.

Assim como a maioria dos prefeitos evitou envolver-se com a questão da segurança pública – e, no máximo, contribuiu com as polícias, através da doação de equipamentos, viaturas e imóveis -, houve aqueles que mergulharam de cabeça na problemática e alcançaram êxitos notáveis, reduzindo drasticamente a criminalidade, em particular a criminalidade violenta e, sobretudo, a violência letal. Honra seja feita aos desbravadores. Eles estão colhendo, agora, merecidamente, os frutos políticos pela ousadia e o sucesso.

É preciso aprender com a experiência acumulada, boa e má, evitando a tentação de inventar a roda ou de repetir erros já cometidos. Fora do Brasil, tem havido belas experiências municipais, em países sul-americanos, na América do Norte e na Europa.

Quando o prefeito acha que se enfrenta a insegurança com truculência repressiva, pensa imediatamente em criar uma Guarda Civil Municipal, armá-la até os dentes e lançá-la às ruas, provavelmente induzindo-a a agir preferencialmente contra pobres e negros. Convida um oficial da PM para chefiá-la (não um oficial crítico, mas um entusiasta do modelo belicista) e aposta todas as fichas na criação de uma Polícia Militar em miniatura, sem atentar para o fato de que a PM, via de regra, já é um pequeno exército em desvio de função. A Guarda será a cópia da cópia, o desvio do desvio, a miniatura da miniatura, importando e ampliando todas as deficiências organizacionais, culturais, gerenciais e estratégicas da PM.

Eis a oportunidade histórica perdida. Eis a grande chance de mudança desperdiçada. Eis a maldição autoritária do Estado brasileiro perpetuada e estendida em larga escala a novas esferas de poder. O avanço do município no terreno da segurança tem tudo para representar renovação, criação de nova institucionalidade, transformação profunda de meios, métodos, fins e valores. Tem tudo para significar a demonstração prática de que é possível e necessário combinar respeito aos direitos humanos e eficiência das instituições da segurança.

Seria um desastre se o Brasil deixasse passar o momento, a oportunidade, a chance histórica.

***

Cada cidade tem sua própria realidade, fruto de sua história, indissociável, claro, dos processos nacionais e regionais, sócio-políticos e econômicos. Os fluxos demográficos, a dinâmica da urbanização, as transformações nos valores culturais, as mudanças nas relações sociais, nas experiências cotidianas, nas estruturas familiares, nas redes comunitárias e de vizinhança: cada fenômeno provoca situações diferentes. O Brasil é um país eminentemente diversificado. As múltiplas realidades regionais são profundamente distintas.

Soluções uniformes e medidas lineares não resolvem. Camisas-de-força, centralizadoras e autoritárias, além de contrárias aos princípios republicanos, não funcionam, porque tropeçam na riquíssima pluralidade que constitui nossa complexidade nacional – complexidade potencializada pelas dinâmicas de globalização. Mesmo assim, é possível conceber uma política nacional para a segurança pública, ao nível municipal, desde que seja flexível o suficiente para absorver os projetos que provierem da observação do que é peculiar a cada município.

É nosso dever disputar menino a menino, menina a menina; competir com o tráfico e o crime, oferecendo aos adolescentes e às crianças pelo menos as mesmas vantagens que o outro lado oferece, mas com sinal invertido, é claro. Cabe-nos criar condições para que pelo menos as mesmas vantagens possam ser experimentadas no lado de cá. Os focos da disputa são o coração e a cabeça dos jovens, não é o bolso, ainda que ele seja também de grande relevância. Centro da briga histórica que se trava à beira do despenhadeiro e talvez nos afaste da barbárie, são o afeto e o imaginário das crianças e dos adolescentes (seu mundo valorativo, simbólico-cultural e psicológico). Esta não é uma disputa contábil. Não se trata somente (nem principalmente, ousaria dizer) de dinheiro, mesmo sendo o dinheiro fundamental – jamais o subestimemos, até porque ele é muito mais que instrumento para aquisição de bens e serviços; ele é, em si mesmo, símbolo de poder que confere a quem a possui a aura privilegiada que dignifica, distingue e valoriza.

É também nosso dever investir nas Guardas Municipais, valorizá-las profissionalmente, qualificá-las organizacionalmente, para que elas se tornem as agências de segurança pública do futuro, eficientes e respeitosas da legalidade, merecedoras da confiança popular, ágeis e transparentes, inteligentes e capazes de prevenir, geridas racionalmente e dotadas de mecanismos de diagnóstico-planejamento-avaliação e monitoramento, antecipando mudanças às quais as polícias estaduais e federais deveriam se submeter, assim que possível.

A NOVA GUARDA MUNICIPAL PARA UMA SEGURANÇA CIDADÃ

A Constituição de 1988 autoriza os Municípios a constituírem Guardas Municipais visando à proteção de seu patrimônio, bens e serviços. Esse papel de segurança patrimonial, que é definido por algumas administrações municipais como secundário, tem sido bastante ampliado e redefinido sem que se viole o preceito constitucional.

Algumas Guardas, desmilitarizadas e desvinculadas da força policial estadual, vêm se tornando agências públicas de segurança preventiva de fato, mas não de direito.

A Confederação Nacional das Guardas Municipais declara que existem, hoje, no país, cerca de 60 mil guardas civis, lotados nas mais de 300 Guardas Municipais, as quais atuam sem parâmetros mínimos e comuns de estrutura e funcionamento. A SENASP – Secretaria Nacional de Segurança Pública – criou um banco de dados sobre as Guardas Municipais, tendo como base pesquisa realizada em 2002 e dados do IBGE.

Contudo, as informações estão sendo revistas, pois muitos municípios confundiram, na mesma categoria funcional, guardas civis e vigilantes patrimoniais, distorcendo, nesse sentido, o quadro atual das Guardas Municipais. Portanto, inexiste, atualmente, um sistema de informações fidedignas que nos possibilite mapear a realidade das Guardas Civis no Brasil.

Mesmo assim, é possível inferir um conjunto de informações que oferecem um retrato geral da situação das GCM. O Plano Nacional de Segurança Pública do Governo Lula apresentou como diagnóstico o seguinte cenário:
· A instituição Guarda Civil Municipal não possui uma identidade uniforme, legitimada e reconhecida nacionalmente. Por conseqüência, algumas ainda são vistas como Serviços de Vigilância Patrimonial. Muitos guardas civis tiveram a sua formação na segurança privada e são ex-vigilantes.
· Muitas Guardas não possuem hierarquia, cadeia de comando ou gerenciamento adequado de informações.
· Não há mecanismos de gestão, código de ética, controle interno ou externo, ou seja, mecanismos que garantam legitimidade, confiabilidade e eficiência.
· As Guardas, via de regra, não possuem padrões mínimos de recrutamento, seleção e formação – concurso, exigência de escolaridade, currículo mínimo de formação e capacitação orientada por finalidades públicas.
· O acesso dos guardas civis à tecnologia de informação e comunicação também é precário e contingente. Os equipamentos de treinamento e a preparação física são precários.
· Em inúmeros casos, há carência de uniformes, símbolos distintivos, rituais próprios, uma linguagem particular e formas de comunicação com a sociedade que contribuam para a constituição de uma identidade institucional.
· Os regimes de trabalho não estão padronizados e não há plano de carreira.
· O uso e o controle do emprego de armas de fogo, assim como a necessária reciclagem a cada dois anos, não estão sendo devidamente fiscalizados.Enfim, há uma crise entre a identidade instituída e a identidade instituinte. O debate central no interior das entidades representativas das Guardas gira em torno do papel e das novas atribuições que devem assumir, alcançando também temas como acesso a equipamentos de proteção e a armas letais.

Há gestões que defendem a concessão de maiores responsabilidades às Guardas municipais, sem ferir o previsto na Constituição e sem encará-las como uma espécie de duplicação das polícias militares. Nestes casos, atribui-se à interação dos profissionais da Guarda com a comunidade um lugar central, valorizando-se também seu relacionamento cooperativo com os demais órgãos do poder público, entre eles e com especial destaque as Polícias estaduais.

O processo de expansão de atribuições das Guardas, a influência de uma cultura reativa, a fragilidade conceitual e a escassez de quadros capacitados para a gestão de uma Guarda Municipal cidadã vêm favorecendo a reprodução de estratégias, vícios e limitações que hoje caracterizam as polícias estaduais, assim como a conseqüente disputa irracional de competências, em lugar do intercâmbio solidário, da troca de informações e da cooperação nas ações de prevenção.

O Brasil está diante de uma oportunidade histórica: rever o pacto constitucional, relativo às instituições da segurança pública, graças às novidades que emergem na esfera municipal. Estamos na iminência de romper a camisa-de-força de nosso modelo policial, engessado pelo centralismo anti-republicano, autoritário e incompatível com a diversidade nacional. O ingresso do município no campo da segurança pública, como o novo protagonista, assumindo responsabilidades crescentes (às quais deverá corresponder o repasse de recursos equivalentes), expressa fundas necessidades de reforma e prenuncia mudanças em larga escala.

Proposta de reforma da guarda municipal

É preciso qualificar a Guarda Municipal – há, no Brasil, Guardas mais e menos qualificadas, mas todas só terão a ganhar com a reforma aqui proposta – para dotá-la das condições necessárias para que atue em favor da segurança pública, imediatamente, nos marcos legais hoje vigentes, preparando-a, ao mesmo tempo, para que venha a se tornar, no futuro talvez próximo, quando legalmente autorizado, o embrião de uma Polícia Cidadã de ciclo completo – o pressuposto dessa afirmação é a convicção de que a municipalização gradual da segurança revela-se um processo inexorável, que deverá fazer-se acompanhar da normatização do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), que envolveria, sem camisas-de-força, uniformização nacional da formação profissional básica, das informações, da perícia e dos mecanismos de gestão e controle externo.

Além do necessário desenvolvimento organizacional da Guarda Municipal, com vistas à implementação de sólidas mudanças institucionais, principalmente nas áreas de gestão e modernização, convém destacar a importância de que se realizem os seguintes esforços de interesse imediato:

Integração sistêmica: Otimização da interface institucional entre Estado e Município, com vistas à racionalização de recursos humanos e materiais: atualmente, existe, na maior parte das cidades brasileiras, sobreposição de atribuições funcionais entre Polícia Militar e Guarda Municipal. O trabalho de racionalização do emprego operacional das forças estaduais e municipais poderia ser regulado através de um convênio de cooperação. A implantação de um call center comum à PM e à Guarda ajudaria no trabalho de triagem e encaminhamento de chamadas, potencializando a capacidade preventiva e de pronto atendimento de ambas as instituições. A justaposição das áreas sob responsabilidade das unidades locais (distritais) das polícias estaduais com as áreas sob responsabilidade das Inspetorias da Guarda Municipal, conferindo a essas unidades o status de sujeito ativo da gestão da segurança, possibilitaria uma melhor integração e articulação entre as forças, além de viabilizar a partilha de informações, que deveriam organizar-se sobre plataforma cartográfica digitalizada, formando um banco de dados e imagens, consubstanciado em modelos geo-referenciados de última geração.

Formação cidadã: Ampliar o papel da Guarda Municipal, propiciando condições adequadas de ensino e instrução, com vistas à consolidação de um novo modelo de formação e treinamento continuado, com especial ênfase na capacidade de gestão, privilegiando os valores universais da cidadania e a iniciativa na administração e resolução de conflitos. Diante das desigualdades sociais crescentes e da permanente perspectiva de conflito, novas tendências e modelos de prevenção do delito devem ser aplicados, em substituição aos velhos paradigmas.

Gestão e modernização: A missão constitucional das Guardas Municipais – independentemente da capacidade jurídica para o exercício ou não dos atributos derivados do poder de Polícia – exige, das organizações que compõem o sistema de segurança pública (e dela própria), a adoção de um novo modelo de gestão. Tal modelo deve estar calcado em capacidade gerencial altamente qualificada, com vistas à adoção de novas rotinas, que correspondam à racionalização do trabalho integrado, seja reativo, seja preventivo e prospectivo.

Objetivos da Guarda Municipal cidadã para um Brasil republicano e democrático

· Aumentar a segurança, atuando, com eficiência, na prevenção e na contenção da violência e da criminalidade;
· Garantir o cumprimento das leis, cumprindo-as e respeitando os direitos humanos, evitando, conseqüentemente, preconceitos de classe, cor, gênero, religião ou orientação sexual;
· Definir-se, na prática e na formação da própria identidade institucional, como instrumento a serviço da cidadania, não do Estado, afirmando-se como guardiã de direitos e liberdades;
· Promover o acesso equânime à Justiça;
· Restituir confiança popular às instituições da segurança;
· Desenvolver estratégias adequadas para atender, administrar e resolver conflitos, considerando a especificidade dos problemas e necessidades de cada comunidade;
· Qualificar e ampliar o nível de participação comunitária nas atividades de planejamento, controle e gestão do patrulhamento, através do desenvolvimento de programas especiais e da organização sistêmica do patrulhamento;
· Articular-se com outros órgãos governamentais, na promoção de políticas preventivas, e integrar-se ao Sistema Único de Segurança Pública.

Diretrizes para a reforma da Guarda Municipal Cidadã

· A GM deverá realizar rondas preventivas permanentes, interagindo com as Polícias estaduais para a proteção da população, agindo junto à comunidade, objetivando diminuir a violência e a criminalidade, e promovendo a mediação de conflitos e o respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos.
· A GM deverá prevenir e inibir atos delituosos que atentem contra as pessoas, os bens, serviços e instalações municipais, priorizando a segurança escolar.
· Ficará a cargo da GM o patrulhamento de trânsito, nas vias e logradouros da cidade.
· A GM também terá como responsabilidade a proteção do patrimônio ecológico, cultural, arquitetônico e ambiental do município, adotando medidas educativas e preventivas.
· A metodologia prioritária, ainda que não exclusiva, de intervenção da GM deverá ser a resolução pacífica dos conflitos. Para tanto, será necessária uma formação voltada para o desenvolvimento das seguintes habilidades: a) capacidade para diagnosticar situações conflitantes; (b) aptidão para produzir diagnósticos mediante o levantamento dos dados pertinentes, de natureza diversa; c) competência para formular, interativamente, estratégias de solução, em múltiplas esferas, o que envolve a capacidade de mobilizar os recursos multissetoriais apropriados (policiais, sociais, econômicos, políticos e culturais ou simbólicos) e a aptidão para negociar sua aplicação.
· A Guarda Municipal disporá de um núcleo de coleta, organização, processamento, análise e difusão de dados, que adotará a metodologia do geoprocessamento –sistema informatizado de leitura dos dados criminais a partir de cartografia digitalizada -, a qual articular-se-á ao modelo participativo e rigoroso de gestão, fundado na combinação entre planejamento coletivo e monitoramento permanente.
· A circulação constante deve ser acompanhada pelo uso de tecnologia leve e ágil de comunicação com a central de monitoramento da Guarda.
· Será criada uma rede com a segurança privada (caso esta venha a ser reconhecida legalmente e aprovada por uma fiscalização rigorosa e por uma regulamentação que imponha transparência e treinamento dos profissionais nas agências da segurança pública, garantindo-se acesso das agências públicas a informações sobre localização, atuação e suas características) em benefício da maximização dos recursos e do potencial de ação da segurança pública, invertendo o quadro atual.
· Será criada a Ouvidoria da Guarda Municipal, órgão independente, destinado ao diálogo e à avaliação por parte da comunidade, com atribuições de fiscalização, investigação e auditoria da Guarda e de suas ações. O(A) ouvidor(a) terá mandato, que lhe garantirá a independência, depois de nomeado(a) pelo Prefeito, observando-se o disposto em Lei Municipal.
· O recrutamento será rigoroso, quanto aos aspectos técnicos, psicológicos e ético-legais. Será estimulada a incorporação de mulheres e de representantes das minorias. Será exigido segundo grau completo dos candidatos.
· Os concursos deverão contemplar: fase preparação básica mínima de 720h/aula de disciplinas teóricas e estágio de 360h/aula.
· Será criada a Academia da Guarda Municipal (em convênio com Universidades porventura presentes na cidade), com a finalidade de capacitar, formar e promover o aprimoramento dos integrantes do quadro de servidores da GM.
· A formação será um processo permanente e multidisciplinar, devendo ser oferecida pelas Universidades e por Organizações Não-Governamentais especializadas nos temas pertinentes, com ênfase em mediação de conflitos, direitos humanos, direitos civis, crítica à misoginia, ao racismo, à homofobia, defesa do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e na especificidade da problemática que envolve a juventude, as drogas e as armas, assim como nas questões relativas à violência doméstica.
· Deverá ser dada atenção especial ao treinamento em artes marciais, porque elas apresentam muitas vantagens práticas e culturais, ajudando a infundir na corporação seu compromisso com a paz e com o uso comedido da força, sempre compatível com o respeito aos direitos civis e humanos.

NOTA SUPLEMENTAR SOBRE REFORMA CONSTITUCIONAL

Verifica-se, portanto, a possibilidade de aperfeiçoamento da Guarda Municipal, de tal modo que ela possa cumprir com mais eficiência e com mais respeito aos direitos humanos suas atuais funções constitucionais. Observa-se, entretanto, que esse aperfeiçoamento antecipa a transição institucional da Guarda rumo à Polícia Municipal Cidadã e prepara seu advento, tornando-a embrião desta.

A nosso ver, essa transição deve ocorrer, inicialmente, nos municípios com mais de um milhão de habitantes e, aos poucos, naqueles com mais de 500 mil habitantes, e assim sucessivamente, de acordo com o sucesso alcançado pelas mudanças promovidas nas cidades maiores. Essa parece ser a tendência política predominante no Congresso nacional, sob a pressão crescente da opinião pública e à luz da evidência: os municípios, com sua capacidade de intervenção capilar e sua permeabilidade à participação social, constituem a unidade de gestão mais adequada ao tratamento das questões mais complexas, que afetam o dia a dia da sociedade, a partir de dinâmicas sempre específicas e processos locais.

De nosso ponto de vista, a gradual municipalização da segurança pública – devidamente acompanhada da correspondente transferência de recursos, o que envolveria uma renegociação do pacto federativo – seria extremamente positiva, desde que algumas condições fossem atendidas: basicamente, que as polícias municipais (fruto de reformas das Guardas ou criadas como tais) se organizassem como polícias de ciclo completo (responsáveis, portanto, pelo trabalho preventivo-ostensivo e pelas funções investigativas-judiciárias, ao contrário do que hoje ocorre, com a irracional divisão das atribuições que compõem o ciclo, entre PM e Polícia Civil) e desde que respeitassem normas nacionais, previstas no Sistema Único de Segurança Pública, quanto a formação e capacitação, gestão do conhecimento, estrutura funcional, perícia, controle interno, prevenção e controle externo.

O risco haveria – sobretudo nos municípios menores – se estas condições não fossem cumpridas, o que nos levaria de volta ao passado, condenando o país a repetir os próprios erros, reproduzindo nas novas instituições municipais as deficiências que caracterizam, hoje e tradicionalmente, as polícias estaduais brasileiras. Com um agravante – mais provável nos menores municípios: prefeitos inescrupulosos tratariam as novas instituições como guardas pretorianas a serviço das oligarquias locais.

Por isso, a municipalização da segurança é uma faca de dois gumes: um avanço histórico extraordinário, exprimindo princípios republicanos e democráticos essenciais, expressão de uma necessidade incontestável, oportunidade de transformações profundas em nosso modelo de polícia e de segurança pública; mas, ao mesmo tempo, risco de reprodução dos velhos vícios, que já se tornaram atávicos, no Brasil, por sua tradição centralizadora e autoritária, pouco afeta à transparência e à participação popular, marcada pela lamentável noção segundo a qual as polícias existem para proteger o Estado e não para servir a cidadania, defendendo seus direitos e suas liberdades.

Sugestão à sociedade civil, aos gestores municipais e ao Congresso Nacional: O Congresso Nacional deveria aprovar a desconstitucionalização das polícias, transferindo aos Estados a autoridade para definirem os modelos que melhor lhes convenham. Afinal, o Acre é diferente de São Paulo, Alagoas não é Minas Gerais, o Rio de Janeiro não é Santa Catarina, e assim sucessivamente. Alguns Estados preferirão manter o status quo policial; outros optarão pela unificação das polícias; outros criarão novas polícias, de ciclo completo; outros desejarão transformar suas polícias em polícias regionais, dividindo-as. As possibilidades são inúmeras. O fato é que, com a eventual aprovação dessa PEC, o Brasil ingressaria numa era de experimentação e de diversificação de suas soluções, adaptando as instituições à multiplicidade de suas realidades regionais.

Aprenderíamos uns com os outros e nossos erros nos iluminariam, reciprocamente. Estariam dadas as condições para que o ciclo autoritário de nossa história política, finalmente, se esgotasse, complementando-se a transição para a democracia. A segurança pública teria sido, portanto, a última área a ser afetada pela democratização.

Além disso, por legislação infra-constitucionais, se postularia a normatização do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), para que se fixem regras nacionais, sem camisas-de-força, para a formação (ao nível do ciclo básico) e a organização da informação (para que se uniformizem as linguagens informacionais, viabilizando a comunicação e o trabalho cooperativo entre as polícias), para a gestão (viabilizando uma gestão racional, envolvendo planejamento, avaliação e monitoramento corretivo), a perícia (valorizando-a e garantindo-lhe autonomia) e o controle externo (garantindo transparência, participação da sociedade e criando mecanismos efetivos de controle da brutalidade e da corrupção).

Com a desconstitucionalização, poderíamos propor, no estado do Rio de Janeiro, a municipalização da segurança nos municípios com mais de 1 milhão de habitantes, atribuindo a esses municípios o poder de criar suas polícias de ciclo completo.

Observe-se que esta municipalização não implicaria fragmentação institucional. Pelo contrário, fragmentação é justamente o que se tem hoje. Atualmente, o Brasil reúne o pior de dois mundos, fragmentação e centralismo: suas polícias não cooperam nem se comunicam, perdidas numa babel caótica e fragmentária, mas o modelo institucional é centralizado, engessado, anti-republicano e ineficiente.

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