Viver em sociedade significa existir, simultaneamente, em
esfera pública e privada, além de ter direitos e deveres para com estas
categorias. Fazer uso aleatório, sem qualquer regulamentação, destas esferas
(ou do que faz parte delas) causa danos a diversos arranjos que asseguram o bom
funcionamento da vida individual e coletiva, além de danos à confiança nas
instituições que existem para regulá-las.
Separando o joio do trigo:
a arquitetura dos sistemas
Sobre
a arquitetura dos sistemas, consideremos, em primeiro lugar, que a política
possui três dimensões interdependentes:
·
a polity (regras do jogo político),
·
a politics (a competição política; o próprio jogo), e
·
a policy (políticas públicas; o resultado do jogo).
Portanto,
boa parte do que se pensa sobre política precisa passar por este filtro
classificatório. Atores políticos se comportam de maneira bastante diferente
quando enquadrados em cada uma destas dimensões e, muitas vezes pela falta de
esclarecimento a respeito da parte que não opera corretamente, corre-se o risco
de se fazer avaliações equivocadas sobre os fatos.
Ninguém está acima da lei:
a questão da confiança
No Estado Democrático de Direito, nenhum
indivíduo pode estar acima da lei. No entanto, já dizia Marshall que, embora os
homens sejam iguais em status –
direitos e deveres –, jamais serão em poder. Este poder a que ele se refere é o
propiciado pelo mérito, a ascensão social por meio do trabalho num contexto de
livre mercado.
Mas
uma coisa é a arregimentação de poder por meio de vias legais, outra é a
arregimentação de poder por meio de conduta e práticas espúrias, o que acende
discussões normativas e a respeito da manutenção de princípios éticos na
política. Num contexto em que existe um relaxamento da responsabilização e das
punições para aqueles que cometem infrações contra a ordem pública, seja no
aspecto normativo ou moral, a política e suas instituições acabam por ficar
desmoralizadas e desacreditadas.
Exemplos
de fatos ocorridos durante o ano que contribuíram negativamente com o
descrédito das instituições foram:
·
a desmoralização, pelo próprio governo, da Comissão de Ética
Pública, que sugeriu a saída de Carlos Lupi do Ministério do Trabalho, mas não
foi considerada;
·
a não cassação, pelo Parlamento, do mandato de Jaqueline Roriz,
que recebeu dinheiro de Durval Barbosa. Jaqueline pediu a rejeição do parecer
do Conselho de Ética sob o argumento que não exercia nenhum mandato quando o
fato foi consumado; e
·
a não validação do Ficha Limpa.
Afirmar
que a sociedade não se esforça para “não demonizar a política” seria um erro,
posto que os cidadãos procuram, ao menos, aceitá-la como é – considerando as
imperfeições das instituições e a realidade da arquitetura do sistema político,
também uma arena em que vale “quase tudo” para se manter no poder ou difamar,
sem um argumento verdadeiramente producente, aqueles que estão no poder.
O
que a sociedade não aceita é ausência de responsabilização daqueles que ferem
princípios democráticos e republicados, permanecendo sem qualquer punição. Os mais politizados se perguntam ainda, entre outras
coisas, por que a “faxina ética” precisa ser realizada pela imprensa e por que
a atuação do governo é reativa e não ostensiva contra o próprio mal que lhe
corrói. A impressão que se tem é que os comandantes dos altos postos
administrativos deste país alienaram seu compromisso com a transparência e com
as punições.
Afora
as considerações acima, pesquisas realizadas pelo cientista políticos José
Alvaro Moisés (USP) apontam que o grau de confiança em pessoas do núcleo
privado é muito maior do que em relações interpessoais do núcleo público, bem
como em diversas instituições representativas do regime democrático. Apesar de
os dados corresponderem ao ano de 2006, são válidos para a reflexão da
conjuntura porque apontam para uma tendência do comportamento social.
Neste
ano, em resposta à conduta dos homens públicos e o funcionamento das
instituições públicas, foram realizados inúmeros protestos que levantaram a
bandeira contra a corrupção e a impunidade, e que reclamaram um melhor
funcionamento ou a extinção de determinadas instituições. Os grupos – muito
deles organizados na internet –, supostamente sem qualquer vinculação
partidária, reuniram-se em diversas regiões, ora com um grande número de
participantes, ora com baixíssimo número.
Apesar das boas iniciativas, as manifestações
ocorreram mais de maneira espasmódica. Em um novo modelo de organização, carente de lideranças bem
definidas, os grupos apareceram um tanto dispersos, muitos
deles sem uma plataforma de atuação ou projeto mais bem estruturado. Em
suma, apareceram com uma força muito menor do que aquela que originou a
Primavera Árabe – a mobilização social iniciada na internet que desencadeou uma
série de reformas políticas em países do Oriente Médio e da África.
Que
venha 2012.